Assim
como chegou, o pai da Bruna partiu. Foi sem se despedir, como chegou sem
avisar, era assim que preferia, era assim que tinha de ser. Antes de a filha
esconder o novo desenho, o “galã grisalho” como ela o chamava, estava na metade
do caminho. Triste ficou e não podia ser diferente, a menina o amava e a
reciproca era verdadeira, em sua companhia a filha queria partir para qualquer
lugar, ou a lugar algum. O tempo foi pouco “cinco dias”, mas a intensidade
muita. Juntos foram à feira, ao teatro e ao parque de diversão. Comeram comida
japonesa, churrasquinho de gato, descansaram no sofá e trocaram confidências.
Ela querendo saber mais do que devia e ele respondendo menos do que sabia,
coisas entre pai e filha. Com a Dolores se divertiram no centro da cidade e no
cinema fizeram guerra de pipoca. Poderia ter se despedido, claro que sim, mas a
tristeza seria maior, o bilhete na mochila daria conta do recado e se não desse,
em breve estaria em casa novamente. Na briga entre a emoção e a razão, deixou o
senso de responsabilidade fazer o que tinha de ser feito. E assim abandonou a cama
antes de o portuga levantar as portas da Nova Esperança.
Com
a cabeça nas nuvens e o pé no acelerador cortou ruas e avenidas sem perceber que
ao final da curva sinuosa, a polícia iniciava uma blitz. Carros para direita,
carros para a esquerda e ele todo apavorado tendo que pisar no freio para não
atropelar os militares. – Encosta! O apressadinho,
tá indo para onde? Tá fugindo de quem? –
De ninguém, não senhor! – Então por que a pressa? – Pressa alguma, estava
distraído. – O senhor sabia que a distração pode causar acidentes? – Sim! – Se
sabe do perigo deveria ficar atento! – Desculpe seu guarda! – Guarda não, cabo!
– Perdão cabo, não costumo andar a essa velocidade, hoje infelizmente sai
atrasado e acabei me excedendo – Então não foi distração? – Foi!!! – Mas o senhor não acabou de dizer que saiu
atrasado? – Sim! – Então não foi
distração e sim pressa. – Mais ou menos! – Não existe mais ou menos, senhor. É
uma coisa ou outra. – Tem razão! – Razão
em quê, senhor? – Que não existe mais ou menos. – Então...? – Para ser sincero
o relógio não despertou e acabei perdendo a hora, saí às pressas e deu no que
deu. – Entendo! O relógio não desperta, o senhor sai de casa atrasado e quase
atropela os polícia que estão tentando ganhar o seu pão de cada dia a essa hora
da manhã?! – Me desculpe cabo, hoje realmente estou com a cabeça no mundo da
lua, acho que foi a noite mal dormida. Entendo! – Tenho um encontro importante
com uma cliente muito influente – Cliente é, sei! Carteira de habilitação e
documentos do veículo. – Só um instante.
– Desligue o motor, tire a chave do contato e desça do veículo, o polícia Ramires
vai verificar a documentação? – Pois não! – Enquanto aguardamos, irei vistoriar
o automóvel. – Ok! – Vamos começar pelo
extintor! – Não entendi! – Gostaria de
ver o extintor. – Ah! Sim! Um minutinho. – Ao contrário do senhor, não tenho pressa
alguma. – Está aqui! – Deixe-me ver! Me parece
um homem bem precavido. – Por quê? – É o primeiro extintor que vejo dentro da
validade! Sem medo de errar, esse é um item de segurança que as pessoas não
observam, é como se estivesse ali de enfeite, alguns nem sabe que existe, e
quando sabem, não conhecem o seu funcionamento.
– Não é o meu caso, o troquei na semana passada. – Perfeito, se o
extintor está em ordem vamos ver as luzes, acenda, por favor. – Quais!? – Todas!
Setas, farol alto, baixo, luz de freio. – Muito bem! Abra o porta-luvas. – Não
entendi! – O senhor tem problema de audição?
– Não! – Então abra o porta-luvas; quero vistoriá-lo – Ah sim! – Cabo! – Pois
não, soldado! – Nada consta! O sujeito está limpo, os documentos em ordem e o
tenente Amorim o aguarda no rádio! – Assuma a vistoria polícia, se terminar
primeiro que eu me chame antes de liberá-lo. O senhor me de licença, enquanto falo com o comandante.
– Á vontade, cabo!
Tem
dia que parece noite e é melhor nem sair de casa, foi o que lhe passou pela
cabeça ao ver o soldado com olhos ave de rapina e jeito de galinha das canelas
secas ciscando em baixo dos tapetes.
– Levante os bancos! – Pois não!
– OK! Aqui está tudo em ordem, agora vamos ver o porta-malas. – O porta-malas?
– Sim, por quê? Há algo lá que o senhor quer nos esconder? – De jeito nenhum! –
Então iremos verificá-lo. – O soldado é quem manda! – Abra! – Calma vou abri-lo. – Que cheiro é esse! O que andou carregando
nesse carro, defunto? – Água, seu guarda! Na pressa deixei uma garrafa de água entreaberta,
quando me dei conta o estrago já estava feito. – Obrigado soldado, agora eu
assumo. Que cheiro de carniça é esse no seu carro, senhor? – Estava acabando de
dizer para o soldado, como era mesmo o nome dele? – Ramires, soldado Ramires! –
Pois bem, estava explicando ao soldado Ramires que na pressa deixei uma garrafa
de água entreaberta e quando fui olhar... – Entendo! O que não consigo compreender
é por que está sempre apressado. – Sabe que nem eu. – E a que cargas d’água o
senhor deixa uma garrafa entreaberta justamente no porta-malas se o lugar mais
correto seria guardá-la no porta objetos do carro. – Distração, sabe como é...!
– Cuidado! Um dia essa distração pode lhe custar caro! – Vou seguir o seu
conselho. – Triângulo, estepe. E essas malas? Está de viagem? Não! Roupas do
dia-a-dia! Sendo do dia-a-dia o senhor não vai se importar que dê uma olhada:
Claro que não! – Abra! – Só um instante!
– Hum! Atlas de anatomia. Trabalha na saúde ou coisa parecida? – Não! O
estudo nas horas de folga. – Interessante, é a primeira pessoa que vejo estudar
o atlas de anatomia nas horas de folga, sem ao menos trabalhar na área. – Hoby –
Hoby estranho esse, eu prefiro jogar sinuca. – Cada um faz o que gosta. – Tem
razão, nesse tempo de polícia já presenciei coisas que até o diabo duvida. – Acredito – Está tudo em ordem! – Então estou
dispensado? – Ainda não, preciso preencher o talão de multas. – Por quê? – A placa dianteira! – O quê que tem?
– Está inelegível. – Como! – A placa está apagada senhor, aparentemente não da
para identificar as letras. – Como não! –
A tinta quase não existe. – Só me faltava essa! O filho da mãe está querendo
reforçar os cofres para a campanha? – O que disse? – Esse governador medíocre
está querendo fazer o caixa para a campanha com o meu dinheiro. – Isso quem está dizendo é o senhor, mas lhe
asseguro que desde a morte do casal de religiosos e do desaparecimento do rabino,
o secretário de segurança pôs a corporação em estado de alerta, inclusive
deslocando os polícia do serviço interno, para as ruas. Operação pente fino, sabe
com é... A ordem de capturar os meliantes custe o que custar vem tirando o sono
dos comandantes, ai já viu... – Faça o
seu trabalho, cabo! – O senhor pode se considerar um homem de sorte. – Sorte!? –
Sim! Pois se tivesse caído nas mãos do sargento Morales a sua canseira seria
maior, talvez quisesse apreender o veículo para investigar a origem desse
cheiro. – Seus documentos! – Obrigado! – Boa viagem! – Bom trabalho!
À media que a imagem dos policiais sumia do retrovisor, como um pensamento
atrevido que vem e vai sem que a gente saiba quando ele veio e quando foi
embora, o galã grisalho foi acometido de uma sensação de alívio, num suspiro
profundo soltou o seu. Ufa! Essa foi por pouco.