quinta-feira, 7 de junho de 2012

A Blitz

Assim como chegou, o pai da Bruna partiu. Foi sem se despedir, como chegou sem avisar, era assim que preferia, era assim que tinha de ser. Antes de a filha esconder o novo desenho, o “galã grisalho” como ela o chamava, estava na metade do caminho. Triste ficou e não podia ser diferente, a menina o amava e a reciproca era verdadeira, em sua companhia a filha queria partir para qualquer lugar, ou a lugar algum. O tempo foi pouco “cinco dias”, mas a intensidade muita. Juntos foram à feira, ao teatro e ao parque de diversão. Comeram comida japonesa, churrasquinho de gato, descansaram no sofá e trocaram confidências. Ela querendo saber mais do que devia e ele respondendo menos do que sabia, coisas entre pai e filha. Com a Dolores se divertiram no centro da cidade e no cinema fizeram guerra de pipoca. Poderia ter se despedido, claro que sim, mas a tristeza seria maior, o bilhete na mochila daria conta do recado e se não desse, em breve estaria em casa novamente. Na briga entre a emoção e a razão, deixou o senso de responsabilidade fazer o que tinha de ser feito. E assim abandonou a cama antes de o portuga levantar as portas da Nova Esperança.
         Com a cabeça nas nuvens e o pé no acelerador cortou ruas e avenidas sem perceber que ao final da curva sinuosa, a polícia iniciava uma blitz. Carros para direita, carros para a esquerda e ele todo apavorado tendo que pisar no freio para não atropelar os militares.  – Encosta! O apressadinho, tá indo para onde? Tá fugindo de quem?  – De ninguém, não senhor! – Então por que a pressa? – Pressa alguma, estava distraído. – O senhor sabia que a distração pode causar acidentes? – Sim! – Se sabe do perigo deveria ficar atento! – Desculpe seu guarda! – Guarda não, cabo! – Perdão cabo, não costumo andar a essa velocidade, hoje infelizmente sai atrasado e acabei me excedendo – Então não foi distração? – Foi!!!  – Mas o senhor não acabou de dizer que saiu atrasado? – Sim!  – Então não foi distração e sim pressa. – Mais ou menos! – Não existe mais ou menos, senhor. É uma coisa ou outra. – Tem razão!  – Razão em quê, senhor? – Que não existe mais ou menos. – Então...? – Para ser sincero o relógio não despertou e acabei perdendo a hora, saí às pressas e deu no que deu. – Entendo! O relógio não desperta, o senhor sai de casa atrasado e quase atropela os polícia que estão tentando ganhar o seu pão de cada dia a essa hora da manhã?! – Me desculpe cabo, hoje realmente estou com a cabeça no mundo da lua, acho que foi a noite mal dormida. Entendo! – Tenho um encontro importante com uma cliente muito influente – Cliente é, sei! Carteira de habilitação e documentos do veículo.  – Só um instante. – Desligue o motor, tire a chave do contato e desça do veículo, o polícia Ramires vai verificar a documentação? – Pois não! – Enquanto aguardamos, irei vistoriar o automóvel. – Ok!  – Vamos começar pelo extintor!  – Não entendi! – Gostaria de ver o extintor. – Ah! Sim! Um minutinho.  – Ao contrário do senhor, não tenho pressa alguma. – Está aqui!  – Deixe-me ver! Me parece um homem bem precavido. – Por quê? – É o primeiro extintor que vejo dentro da validade! Sem medo de errar, esse é um item de segurança que as pessoas não observam, é como se estivesse ali de enfeite, alguns nem sabe que existe, e quando sabem, não conhecem o seu funcionamento.  – Não é o meu caso, o troquei na semana passada. – Perfeito, se o extintor está em ordem vamos ver as luzes, acenda, por favor. – Quais!? – Todas! Setas, farol alto, baixo, luz de freio. – Muito bem! Abra o porta-luvas. – Não entendi!  – O senhor tem problema de audição? – Não! – Então abra o porta-luvas; quero vistoriá-lo – Ah sim! – Cabo! – Pois não, soldado! – Nada consta! O sujeito está limpo, os documentos em ordem e o tenente Amorim o aguarda no rádio! – Assuma a vistoria polícia, se terminar primeiro que eu me chame antes de liberá-lo.  O senhor me de licença, enquanto falo com o comandante. – Á vontade, cabo!
           Tem dia que parece noite e é melhor nem sair de casa, foi o que lhe passou pela cabeça ao ver o soldado com olhos ave de rapina e jeito de galinha das canelas secas ciscando em baixo dos tapetes.
– Levante os bancos!  – Pois não!  – OK! Aqui está tudo em ordem, agora vamos ver o porta-malas. – O porta-malas? – Sim, por quê? Há algo lá que o senhor quer nos esconder? – De jeito nenhum! – Então iremos verificá-lo. – O soldado é quem manda!  – Abra! – Calma vou abri-lo.  – Que cheiro é esse! O que andou carregando nesse carro, defunto? – Água, seu guarda! Na pressa deixei uma garrafa de água entreaberta, quando me dei conta o estrago já estava feito. – Obrigado soldado, agora eu assumo. Que cheiro de carniça é esse no seu carro, senhor? – Estava acabando de dizer para o soldado, como era mesmo o nome dele? – Ramires, soldado Ramires! – Pois bem, estava explicando ao soldado Ramires que na pressa deixei uma garrafa de água entreaberta e quando fui olhar... – Entendo! O que não consigo compreender é por que está sempre apressado. – Sabe que nem eu. – E a que cargas d’água o senhor deixa uma garrafa entreaberta justamente no porta-malas se o lugar mais correto seria guardá-la no porta objetos do carro. – Distração, sabe como é...! – Cuidado! Um dia essa distração pode lhe custar caro! – Vou seguir o seu conselho. – Triângulo, estepe. E essas malas? Está de viagem? Não! Roupas do dia-a-dia! Sendo do dia-a-dia o senhor não vai se importar que dê uma olhada: Claro que não! – Abra! – Só um instante!  – Hum! Atlas de anatomia. Trabalha na saúde ou coisa parecida? – Não! O estudo nas horas de folga. – Interessante, é a primeira pessoa que vejo estudar o atlas de anatomia nas horas de folga, sem ao menos trabalhar na área. – Hoby – Hoby estranho esse, eu prefiro jogar sinuca. – Cada um faz o que gosta. – Tem razão, nesse tempo de polícia já presenciei coisas que até o diabo duvida.  – Acredito – Está tudo em ordem! – Então estou dispensado? – Ainda não, preciso preencher o talão de multas.  – Por quê? – A placa dianteira! – O quê que tem? – Está inelegível. – Como! – A placa está apagada senhor, aparentemente não da para identificar as letras. – Como não!  – A tinta quase não existe. – Só me faltava essa! O filho da mãe está querendo reforçar os cofres para a campanha? – O que disse? – Esse governador medíocre está querendo fazer o caixa para a campanha com o meu dinheiro.  – Isso quem está dizendo é o senhor, mas lhe asseguro que desde a morte do casal de religiosos e do desaparecimento do rabino, o secretário de segurança pôs a corporação em estado de alerta, inclusive deslocando os polícia do serviço interno, para as ruas. Operação pente fino, sabe com é... A ordem de capturar os meliantes custe o que custar vem tirando o sono dos comandantes, ai já viu...  – Faça o seu trabalho, cabo! – O senhor pode se considerar um homem de sorte. – Sorte!? – Sim! Pois se tivesse caído nas mãos do sargento Morales a sua canseira seria maior, talvez quisesse apreender o veículo para investigar a origem desse cheiro.  – Seus documentos!  – Obrigado!  – Boa viagem! – Bom trabalho!
          À media que a imagem dos policiais sumia do retrovisor, como um pensamento atrevido que vem e vai sem que a gente saiba quando ele veio e quando foi embora, o galã grisalho foi acometido de uma sensação de alívio, num suspiro profundo soltou o seu. Ufa! Essa foi por pouco.

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